segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Conto



                                           Negócio de menino com menina


     O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina, de uns nove anos, ia de carro com o pai, novo dono da fazenda.
     Gente de São Paulo. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:
     — Olha que lindo! Compra pra mim? 
     O homem parou o carro e chamou:
     — Ô menino. O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da menina. O homem:
     — Esse passarinho é pra vender?
     — Não senhor.
     O pai olhou para a filha com uma cara de deixa pra lá. A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse:
     — Fala pra ele vender.
     O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:
     — Quanto você quer pelo passarinho?
     — Não tou vendendo não senhor.
     A menina ficou decepcionada e segredou:
     — Ah, pai, compra.
     Ela não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. No caso, faltava o vendedor. Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes:
   — Dou dez mil.
   — Não senhor.
   — Vinte mil.
   — Vendo não.
   O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou três notas, irritado.
 
   — Trinta mil.
   — Não tou vendendo, não, senhor.
   O homem resmungou "que menino chato" e falou pra filha:
   — Ele não quer vender. Paciência.
   A filha, baixinho, indiferente às impossibilidades da transação:
   — Mas eu queria. Olha que bonitinho.
   O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na manga, o rosto vermelho de sol.
   — Deixa comigo.
   Levantou-se, deu a volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas gretas da gaiola. O homem, maneiro, estudando o adversário:
   — Qual é o nome deste passarinho?
   — Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.
   O homem, quase impaciente:
   — Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sabiá, é o quê?
   — Aaaah. É bico-de-lacre.
   Menina, pela primeira vez, falou com o menino:
   — Ele vai crescer?
   O menino parou os olhos pretos nos olhos azuis.
   — Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho.
   O homem:
   — E canta?
   — Canta nada. Só faz chiar assim.
   — Passarinho besta, hein?
   — É. Não presta pra nada, é só bonito.
   — Você pegou ele dentro da fazenda?
   — É. Aí no mato.
   — Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu. O menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão.
   — Dou quarenta mil, pronto. Toma aqui.
   — Não senhor, muito obrigado.
   O homem, meio mandão:
   — Vende isso logo, menino. Não tá vendo que é pra menina?
   — Não, não tou vendendo não.
   — Cinqüenta mil! Toma! — e puxou a gaiola.
   Com cinqüenta mil se comprava um saco de feijão, ou dois pares de sapatos, ou uma bicicleta velha.
   O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula.
   — Quero não senhor. Tou vendendo não.
   — Não vende por quê, hein? Por quê?
   O menino acuado, tentando explicar:
   — É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.
   O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento.
   — Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam'bora.
   O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:
   — Amanhã eu dou ele pra você.
   Ela sorriu e compreendeu.
  (Ivan Angelo)  

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